Nas últimas semanas, tem-se falado muito sobre o ChatGPT, uma inteligência artificial (IA) que se comunica com o usuário através de diálogos. Não poderia ser diferente. Trata-se de uma inovação que certamente trará impactos em praticamente todos os setores da economia e em muitos aspectos do dia a dia das pessoas. No meio de tanto deslumbramento com essa ferramenta, baseada na chamada IA Generativa, há muito receio que essa tecnologia possa tirar o protagonismo das pessoas, que seriam gradualmente substituídas no trabalho por um “algoritmo” ou uma “IA”.
Esse receio, pelo menos por enquanto, não tem razão de existir.
A SXSW, evento realizado recentemente em Austin, Texas, foi uma oportunidade para discutir inovação e tecnologia num âmbito muito maior do que apenas os aspectos técnicos. Diversos especialistas em suas áreas deram sua contribuição para analisarmos, de forma holística, o impacto de novas tecnologias, como a IA, dentro de um contexto mais amplo.
Uma das análises mais interessantes foi de Kevin Kelly, co-criador da revista Wired, voz relevante no mundo da tecnologia e da cultura digital. Ele fez uma analogia sobre o papel que uma IA Generativa deverá ter na vida das pessoas: um estagiário pessoal.
Sim, um estagiário. Enquanto muitos pensam que a IA poderá gerir uma grande empresa ou escrever o romance da nossa geração, um dos grandes entendedores no assunto diz que ela, neste momento, não passa de um – promissor e esforçado – estagiário.
O que isso quer dizer? Que, por mais capaz que seja, ainda não faz sentido delegar tarefas nem transferir responsabilidades de decisões tomadas. Você faria isso a um estagiário recém-chegado?
Obviamente, a analogia não deve ser lida com tom pejorativo nem demonstra qualquer desprezo pelos estagiários. A ideia é apenas ressaltar a ideia de que uma tecnologia – como uma pessoa – precisa ser testada e ganhar experiência até poder receber mais autonomia. Eu inclusive fui trainee (bonito título para um estagiário) numa empresa em que trabalhei por 30 anos.
Diversas notícias de uso envolvendo o ChatGPT corroboram a analogia. Algumas tarefas dadas a ele foram muito bem executadas; outras necessitaram de revisão e correção; e houve algumas em que o resultado se mostrou uma verdadeira gafe. Novamente, algo que um iniciante numa profissão pode cometer se não for devidamente acompanhado por um profissional mais experiente.
ChatGPT tem a incrível capacidade de “aprender” com base numa quantidade imensa de informações. Mas tem pouca capacidade de discernir entre todas as informações, a boa da ruim, a certa da errada. Para essa ferramenta, são todas informações que se conectam a partir de padrões identificados entre milhões de informações que lhe foram dadas. Não está guiado por senso comum ou discernimento do ético. E não tem a experiência ou sensibilidade para escolher as informações que se adequam a determinado contexto humanamente aceitável. O papel de ensinar-lhe isso é hoje é feito por funcionários da empresa que o criou, a OpenAI. Mas sua real efetividade em fazer isso ainda é baixa.
A verdade é que ainda falta muito para a tecnologia de fato tirar o lugar dos bons profissionais, por mais que surjam casos em que a IA Generativa realize feitos assombrosos. Ela simplesmente ainda não é confiável em todos os casos – e não ainda sabemos se um dia será.
O mundo que se desenha, e pelo menos sob esse aspecto, pode ser bastante alvissareiro: todos poderemos ter estagiários disponíveis 24/7 para nos ajudar em diversos aspectos de nossa vida – pessoal e profissional. Poderemos ter um “estagiário” que apoiará nossas finanças; um “estagiário” para acompanhar nossa saúde e alimentação; outro para nossos planos de viagens e férias; e por aí vai. E profissionais de diversos setores poderão ter um apoio importante em suas atividades, incrementando significativamente sua produtividade no trabalho.
Com isso, finalizo com o relato da psicoterapeuta Esther Perel durante a SXSW. Ela contou que teve o conteúdo de seus livros, entrevistas, palestras etc. carregados num chatbot, chamado Ai Esther, por um desenvolvedor*. Esse desenvolvedor estava sofrendo com o término de uma relação afetiva e passou a ter conversas com “ela”, que teriam produzido um efeito positivo nele.
Ao ver o teor das conversas, Esther disse ter ficado impressionada e se sentindo de alguma forma representada. Mas alertou para os riscos associados ao uso de um chatbot para a psicoterapia. E como falou Kevin Kelly, você teria um estagiário como terapeuta?
Situações como essa mostram muito claramente os limites da IA generativa. Como um estagiário, ainda precisará aprender muito mais e ser testada em diversas situações até poder receber maiores responsabilidades. Até lá, nos ajudarão a ser mais produtivos e ter maior qualidade em nossos trabalhos. Que venha a nova turma de estagiários!!